Por Dani Ribas
O Spotify disponibilizou na semana passada (19/11/2020) o recurso Canvas para todos os artistas. Trata-se de um pequeno vídeo (3 a 8 segundos) que aparece em looping quando reproduzimos uma música no Spotify a partir de nosso celular. Como um amigo meu disse, essa é a “capa do disco” do futuro.
(Para saber mais sobre como o próprio artista pode adicionar um vídeo Canvas em suas músicas, veja as instruções aqui. Também é possível acessar um guia em PDF aqui).
Antes o recurso só estava disponível para um grupo muito pequeno de artistas, escolhidos pelo próprio Spotify para testar o recurso. A experiência com esses artistas fez com que o Spotify avaliasse o impacto que o vídeo tem nos hábitos de descoberta, escuta e compartilhamento de música.
Estatísticas divulgadas sobre o Canvas Spotify: o que podemos aprender com elas
Numa cultura como a nossa, altamente visual e mediada por redes sociais de compartilhamento de fotos e vídeos, o Canvas aprofunda a fruição musical, pois reforça seus elementos estéticos por meio de uma linguagem absolutamente central na nossa sociedade: a linguagem visual. Contribuem para esse “reforço” da fruição musical os recursos de letras sincronizadas com o áudio via MusixMatch.
Essa centralidade do conteúdo visual aumenta as possibilidades de chamar a atenção do público. Segundo o Spotify, usuários que veem um vídeo Canvas enquanto escutam a música têm 5% mais chances de continuarem ouvindo a música do que usuários que não veem o vídeo. Usuários que veem o Canvas têm 145% mais chances de compartilhar a faixa, 20% mais chances de adicionar a música a playlists próprias, 1,4% de salvar a faixa e 9% de visitar o perfil do artista.
Esses dados são interessantes e revelam nossos hábitos associados à escuta musical. Reparem que a estatística de compartilhamento nas redes (145%) ou salvar em playlist própria (20%) é muito maior do que as de fidelização real do público com a música (5%, 1,4% ou 9%), o que mostra que consumir música não é apenas ouvir. Consumir também diz respeito a como gostamos de ser reconhecidos pelos nossos amigos e rede de contatos.
O próprio Spotify recomenda o compartilhamento em outras redes, e para tanto autoriza até mesmo que o artista, sem a intermediação do distribuidor/agregador digital, troque várias vezes o vídeo Canvas de uma mesma música, para que você compartilhe seu conteúdo independentemente da data de lançamento.
Armadilhas a serem evitadas no Spotify Canvas
Contudo, há recomendações que devem ser seguidas, não apenas em relação às especificações de resolução do vídeo, mas principalmente em relação à política de conteúdo da plataforma (que diz respeito aos limites relacionados aos tipos de conteúdo que você pode usar no Canvas). Na mesma seção, há recomendações sobre conteúdo promocional no Canvas que chama a atenção para uma outra face desse novo recurso.
Assim como o Spotify se reserva o direito de remover conteúdo impróprio (discurso de ódio, pornografia, etc.), a plataforma adverte que também poderá remover conteúdo com “divulgação excessiva”:
“Não use a ferramenta para gerar tráfego para fora do Spotify. Isso inclui, dentre outros, direcionar pessoas para qualquer site, URL ou empresa de venda de ingressos, além de incentivar os usuários a seguir ou curtir suas redes sociais. Qualquer texto usado precisa ter relação com a faixa específica e com a arte/imagem apresentada. Não use texto para divulgar outras músicas ou álbuns não relacionados, contas em redes sociais, marcas (incluindo o logotipo do Spotify), produtos, descontos, experiências para fãs, concursos e sorteios. O texto precisa complementar a imagem ou a arte escolhidas, que devem sempre ser o foco principal da tela do Canvas.”
Spotify
Ou seja: você pode promover sua própria música usando os recursos da plataforma desde que essa promoção aumente o tráfego para a própria plataforma. Caso você use sua música (incluindo letra e vídeo) como gancho para promover sua carreira em qualquer outra plataforma, você pode ter seu vídeo excluído da plataforma.
Isso nos remete a duas questões principais: 1. a dupla dependência entre artistas e plataformas e como isso vem sendo usado pela empresa para atrair assinantes e torná-la menos deficitária (assunto que não vou discutir aqui, fica pra outro post); 2. o acesso ao Big Data gerado pela plataforma e pelas redes sociais.
Big Data nas redes e plataformas
Tenho falado que o mercado musical tem um “fetiche” por dados e não vem se preocupando com uma questão importante: estamos delegando aos algoritmos a produção de conhecimento sobre nós mesmos e sobre nosso público sem nos darmos conta disso. Vou explicar melhor.
O modelo de negócio das redes envolve a microsegmentação de público a partir das reações dos usuários às imagens postadas na rede pelos próprios usuários. Nossos rastros digitais e reações aos conteúdos nas redes são usados para mapear nossas emoções e nos vender como público aos anunciantes. Contra isso parece não haver alternativa no curto prazo.
Eu sempre recomendo que profissionais da música usem todos os dados que temos à nossa disposição, tanto das redes sociais como dos serviços 4Artists. Mas o fato é que usar dados está nos fazendo abrir mão de conhecermos nossas próprias emoções, identidades e processos subjetivos. Estamos abrindo mão do auto-conhecimento e do conhecimento qualitativo sobre nosso público porque achamos que os dados gerados pelos algoritmos fazem isso melhor do que nós, quando na verdade ciência de dados e observação qualitativa são coisas complementares. Métricas das redes (alcance, impressões, interações, salvamentos e seguidores) não podem substituir a observação, registro, classificação, atribuição de significado e diálogo, coisas que costumávamos fazer intuitivamente quando não tínhamos redes e plataformas.
Algoritmos e análise qualitativa
Não estou dizendo que as redes, plataformas e suas métricas não devem ser usadas. Ao contrário, elas devem ser usadas ao máximo, e você deve ter disciplina para realmente usar os dados ao seu favor. Disciplina para aprender como registrar, como analisar e para aprender a usar-los estrategicamente.
Mas as métricas não te dão tudo o que você precisa para traçar estratégias para sua audiência: numa campanha de lançamento pelas redes, qual a taxa de conversão de fãs para a sua música? Você consegue comparar suas taxas de conversão com a de outros artistas? Esses são apenas alguns exemplos da limitação das métricas que temos acesso. E não é que o Spotify não saiba: ele sabe mas não te fornece, pois isso faz parte do modelo de negócio dele.
Na plataforma – Spotify, Instagram ou qualquer outra – você não tem acesso direto ao seu público, pois a relação é mediada pela plataforma cujo único objetivo é coletar todos os comportamentos (de escuta e descoberta, por exemplo) para fazer com que o usuário passe mais tempo na plataforma. Ainda que o usuário chegue à plataforma por meio de um artista em específico, os dados são coletados e usados para que ele passe mais tempo na plataforma, e não necessariamente para que ele escute mais música desse artista que o levou até lá.
A disputa pela atenção do ouvinte é estrutural, ela é uma engrenagem central do estágio atual do capitalismo de dados (ou de plataforma, ou de vigilância) em que vivemos. E contra isso quase não há o que fazer, principalmente num mercado que depende das redes e plataformas para existir e se relacionar com seu público, especialmente durante a pandemia.
O problema é o quanto naturalizamos isso, ao ponto de abrirmos mão de nossa capacidade de reflexão sobre as dinâmicas coletivas que levam à aceitação da nossa música pelo público. Repito: estamos dependentes dos dados (mesmo que ainda não saibamos como usa-los bem) e estamos abrindo mão de nossa capacidade de observação e reflexão sobre o diálogo com nosso público. Os algoritmos sabem mais sobre nós e nosso público do que nós mesmos, e não estamos sequer percebendo isso. E se não percebemos, não há como traçar estratégias alternativas.
E o que o recurso vídeo Canvas do Spotify tem a ver com isso? Ele escancara essa relação: ele intensifica o tráfego entre redes sociais e plataforma de streaming, o que vai gerar muitos dados e insights sobre o consumo de sua música – mas que você não terá acesso a eles.
Claro que esse crossmedia entre música e vídeo e o transmedia entre plataformas diferentes são bons para você e sua música, e você deve usar o recurso para potencializar o alcance dela nas diferentes plataformas. Mas não se iluda: você não pode abrir mão da sua capacidade de reflexão para ter insights sobre sua identidade e audiência, pois as plataformas não vão compartilha-los totalmente contigo.
Se você se interessa pelo assunto, venha conhecer meu método ID_Musique, em que compartilho 12 ferramentas diferentes para você fazer uma análise qualitativa da sua identidade artística, diálogo com o público e posição no nicho. A abordagem é única no mercado, e também inclui uma ferramenta para você organizar todos os dados quantitativos que você coleta nas plataformas.
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