Cadê o artigo que estava aqui? – sobre guitarras elétricas e política de acervos digitais

Hoje, 17 de Julho de 2017, faz 50 anos que um grupo de artistas da MPB protestou contra o uso de guitarras elétricas na música popular brasileira. Participaram da Passeata Contra a Guitarra Elétrica artistas como Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo e Gilberto Gil.

Atualmente isso parece algo absurdo, mas à época era um debate bastante pertinente, já que tocava em questões como identidade nacional e colonialismo cultural.

O assunto, discutido do ponto de vista da legitimidade artística, é um dos temas abordados na tese de Doutorado de Dani Ribas, intitulada Música em Transe: o momento crítico da emergência da MPB (1958-1968).

Ainda sobre esse assunto, foi publicado em 2012 um artigo de Dani Ribas na Revista de História da Biblioteca Nacional, chamado “Xô iê-iê-iê” (você pode consultar a íntegra ao final desta matéria).

Mas … cadê o artigo que estava aqui?

Para relembrar os 50 anos da passeata, fomos procurar o artigo na página da Revista de História da Biblioteca Nacional (RHBN) e ficamos surpresos em saber que a página foi tirada do ar – e com ela todo o acervo publicado da RHBN foi embora também.

A revista física parou de circular em 2016 por problemas financeiros, mas a desabilitação da página da RHBN na internet nos pegou de surpresa.

Para Dani Ribas, isso representa não apenas um perigo para acervos digitais como demonstra uma fragilidade da legislação frente às mudanças tecnológicas.

A internet é um meio suscetível a mudanças, e todos sabemos que links podem parar de funcionar. Mas há casos e casos. A RHBN tem um acervo importantíssimo para ser simplesmente tirado do ar. A situação se agrava se pensarmos que publicações físicas estão cada vez mais cedendo espaço para publicações feitas apenas em meio digital. É o caso do Diário Oficial do Estado de São Paulo, publicação de 127 anos que teve sua última impressão em maio de 2017. Se as coisas estão se tornando só digitais, e o digital não tem proteção legal que o torne perene, como garantiremos o acesso às fontes de nossa história? Em tempos de disputas políticas que se fazem também pelas disputas de narrativas, isso é ainda mais premente e exige posicionamentos e ações imediatas.

Uma política de acervos digitais condizente com as dinâmicas sociais e culturais contemporâneas tem muitas frentes, e uma delas foi exposta pela coordenadora de Serviços Bibliográficos da Biblioteca Nacional, Luciana Grings – que fez parte do GT Glossário da Cultura juntamente com Dani Ribas e outros profissionais.

Em entrevista contundente, Luciana Grings expôs a polêmica que envolve o depósito legal de obras na Biblioteca Nacional e como interesses de mercado estão se sobrepondo à custódia da memória bibliográfica no Brasil, sobretudo no que se refere à guarda de publicações digitais.

Para Luciana “é desrespeitoso rediscutir o depósito legal sem incluir a Biblioteca Nacional”.

O comentário foi feito após Roberto Freire, à época Ministro da Cultura, ter convocado a Amazon (gigante do mercado editorial mundial) num Grupo de Trabalho para propor mudanças na legislação referente ao depósito legal. A possibilidade da participação da Amazon neste processo provocou insatisfação entre os bibliotecários da Biblioteca Nacional que trabalham diretamente com a questão.

Iniciativas importantes

Apesar das preocupações colocadas por Luciana Grings, existem iniciativas que têm garantido a memória digital de publicações importantes. É o caso do lançamento do repositório on-line da Revista Filme Cultura, uma das publicações mais importantes do país na divulgação e no debate sobre o cinema nacional:

O portal foi construído a partir da solução tecnológica Tainacan, desenvolvida pela Universidade Federal de Goiás (UFG). O Tainacan é uma plataforma de gestão de acervos digitais, que apresenta possibilidades de participação social e gestão descentralizada. Outro ganho da utilização do Tainacan é a integração de diferentes tipos de acervos e a categorização e indexação de dados. O objetivo do Repositório da Revista Filme Cultura na plataforma Tainacan, de acordo com a Secretaria do Audiovisual, é permitir o acesso on-line a todos os exemplares da Revista Filme Cultura. (Fonte: MinC)

A UFG tem sido um pólo importante na pesquisa sobre sistematização de dados on-line, sendo a desenvolvedora tanto da solução tecnológica Tainacan, como da Ontologia da Gestão Cultural – sistema que proporcionará melhorias nos Mapas Culturais do SNIIC (Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais), que está pronto e aguarda apenas vontade política para ser implantado.

Mas e a guitarra?

Agora que mudamos de um paradigma tecnológico (o da guitarra elétrica)  para outro (o dos acervos digitais) e o assunto ganhou um update, voltemos ao início da discussão: leia abaixo o artigo que você não vai mais encontrar no site da Revista de História da Biblioteca Nacional. Boa leitura!

Especial Guitarra Elétrica – Xô, iê-iê-iê

Disputa por audiência nos anos 1960 pôs roqueiros e ‘autênticos’ em lados opostos e, aparentemente, quem levou a pior foi a guitarra

Daniela Ribas Ghezzi para a Revista de História da Biblioteca Nacional

1/3/2012

Hoje o ouvinte de música popular não se surpreende ao escutar o som de uma guitarra elétrica. Mas nem sempre foi assim. Na década de 1960, o uso desse instrumento foi alvo de acaloradas discussões. A polêmica chegou ao auge numa passeata contra a guitarra elétrica em São Paulo, em 1967. Os manifestantes, cerca de 400 pessoas, gritavam em coro: “Abaixo a guitarra, abaixo a guitarra!”.

Naquele momento, a música popular ficou polarizada pelo embate entre duas correntes. De um lado, a Jovem Guarda, liderada por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. Suas letras não eram politicamente engajadas e tinham como influência o rock norte-americano. De outro, a MPB, aberta aos regionalismos brasileiros, era intimamente ligada ao contexto histórico e à cultura política da época, denominada nacional-popular, e expressava certa noção de “brasilidade”.

A MPB se formou a partir de um percurso histórico das ideias musicais brasileiras, em sintonia com o processo de modernização do país. O marco inicial deste percurso foi a bossa nova, que começou no Rio de Janeiro em 1958 por meio das figuras pioneiras de João Gilberto, Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980). Jovens universitários de classe média da geração seguinte, como Nara Leão (1942-1989), Carlos Lyra, Geraldo Vandré e Edu Lobo, foram politizando as temáticas das canções aos poucos.

Essas correntes disputavam o mercado de música jovem, crescente no país, mas essa batalha também tinha um caráter simbólico. Se os canais de comunicação com a política estavam fechados, a música popular parecia ser um bom veículo para manifestar as insatisfações de parte dos artistas.  A preocupação com temáticas nacionais e a ênfase na mensagem política da canção passaram a ser muito importantes para aquela geração de músicos – principalmente após o golpe militar de 1964. Nesse contexto, a guitarra virou emblema da alienação alimentada pelo regime militar. Lutar contra ela era um ato repleto de significados. Isso revela a centralidade da música popular não só na cultura, mas também na vida política do país.

A principal emissora da época, a TV Record, abrigava programas de música voltados para os dois grupos. A publicidade em torno deles causou acalorados debates, que foram se acirrando com o passar dos anos. “O Fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina (1945-1982) e Jair Rodrigues, estreou em 19 de maio de 1965 com o foco definido na Música Brasileira Moderna. A turma do iê-iê-iê, versão brasileira do rock americano, também estreou seu programa, “Jovem Guarda”, no mesmo ano.

Para muitos músicos da MPB, a “invasão do rock” promovida pela Jovem Guarda servia aos interesses do regime militar, pois afastava a juventude das preocupações políticas e, por consequência, inseria um tipo de música despolitizada e inautêntica, sem vínculos com a cultura popular brasileira.

Apesar do sucesso de “O Fino da Bossa”em 1965 e 1966, o programa perdera audiência, e em 1967 a emissora decidiu tirá-lo do ar. Para Elis, a culpa da perda de público de seu programa estaria na diminuição do interesse dos jovens pela MPB, causada pela despolitização desse público jovem e pelo sucesso da Jovem Guarda. A TV Record decidiu então lançar outro programa semanal com os músicos da MPB, “Frente Única – Noite da Música Popular Brasileira”, título que alimentava o embate entre as duas correntes.

Para divulgar o terceiro programa da série, que ainda não alcançara a audiência pretendida, a emissora organizou um ato público marcado para 17 de julho de 1967. Segundo orientações da emissora, os músicos contratados da TV Record deveriam se reunir no Largo São Francisco, no Centro da cidade. Dali partiu a passeata. Todo o trajeto – praticamente uma linha reta pela Avenida Brigadeiro até o Teatro Paramount – tinha pouco mais de um quilômetro.

Participaram os principais contratados da Record ligados à MPB: Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e, é claro, sua principal estrela, Elis Regina. Também protestaram artistas ligados ao samba, como Paulinho da Viola e Beth Carvalho, além de críticos musicais, como Sérgio Cabral e Chico de Assis. Já Nara Leão e Caetano Veloso se recusaram a ir. Assistiram a tudo da janela do Hotel Danúbio. Nara comentou que aquilo parecia mais “uma passeata fascista”. Chico Buarque também não participou. Sua posição sobre o assunto foi sintetizada em artigo publicado no jornal Última Hora em dezembro de 1968, chamado “Nem toda loucura é válida, nem toda lucidez é velha”. Chico escreveu: “Nunca tive nada contra esse instrumento, como nada tenho contra o tamborim. O importante é ter Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco.”

Daniela Ribas Ghezzi é doutora em Sociologia e autora da tese “Música em transe: o momento crítico da emergência da MPB (1958-1968)” (Unicamp, 2011)

Saiba Mais – Bibliografia

MELLO, Zuza Homem. A Era dos Festivais: Uma Parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a Canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Música Popular Brasileira (1959-1969). São Paulo: Anablume/Fapesp, 2001.

SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem.A Canção no Tempo, vol. 2: 1958-1985. São Paulo: Editora 34, 4ª ed., 2002.

SEVERIANO, Jairo. Uma História da Música Popular Brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.

Saiba mais – Documentário

“Uma noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil. Brasil, 2010.

Saiba mais – Internet

Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira

http://www.dicionariompb.com.br/