Opinião: o Spotify está criando “bolhas” e não estamos vendo

por Dani Ribas

No dia 02 de Novembro de 2020 o Spotify anunciou o teste de um recurso que promete mudar a promoção de músicas na plataforma: o “Modo Descoberta”.

Explicando o recurso “Modo de Descoberta” do Spotify

Artistas (e suas equipes) poderão “impulsionar” determinado lançamento, indicando qual música é prioritária para usar o recurso. O Spotify vai priorizar a música em suas recomendações na Rádio e Reprodução Automática, mas apenas para usuários cujo perfil se encaixa nessa recomendação. Em troca, artistas aceitam receber uma taxa menor de royalties.

Neste novo experimento, artistas e gravadoras podem identificar a música que é uma prioridade para eles, e nosso sistema adicionará esse sinal ao algoritmo que determina sessões de escuta personalizadas. Isso permite que nossos algoritmos contabilizem o que é importante para o artista – talvez uma música pela qual eles estão particularmente animados, um aniversário de álbum que estão celebrando, um momento cultural viral que estão vivenciando ou outros fatores com os quais se importam.”

Spotify
Sistema de recomendação do Spotify

A plataforma ainda está testando e estudando os impactos do recurso no mercado, e dependendo dos resultados, poderá ampliar o uso da ferramenta.

Há quem diga que esse seria o “jabá 2.0”, ou em inglês “payola”. Mas quero chamar a atenção para outros pontos que me parecem importantes, especialmente a formação de “bolhas” no Spotify.

Analisando o impacto do “impulsionamento” no mercado musical

Vamos comparar o “antes” e o “depois” do streaming. Mas não por saudosismo ou para fazer a apologia da era física. A comparação serve apenas para refletirmos sobre a importância da escolha do usuário num modelo e outro.

Antes do streaming, quando você comprava um álbum, não importava quantas vezes você o tocava, você estava fazendo uma escolha consciente de que valia à pena o investimento. E o sistema de pagamentos (baseado principalmente nas vendas físicas) usava essa escolha do usuário – a compra – como critério de remuneração.

Com o streaming e o modelo “pro-rata” de pagamentos a artistas, essa escolha do usuário não é tão importante. No modelo pro-rata, as mensalidades dos usuários geram um valor total, a partir do qual o dinheiro é distribuído proporcionalmente a todas as faixas que foram ouvidas. O modelo favorece os detentores de direitos das faixas mais ouvidas. Ao contrário do sistema “user-centric”, que distribuiria a mensalidade dos usuários aos artistas efetivamente ouvidos por cada um dos usuários. (A discussão é complexa e longa, mas você pode ver uma comparação dos modelos “pro-rata” e “user-centric” aqui).

Com o modelo de streaming existente, mais artistas podem ter a possibilidade de distribuir sua música, é verdade. Mas nesse modelo, centrado no total de streams da plataforma e na participação de cada artista nesse total, o sistema não recompensa as escolhas conscientes dos usuários do serviço. Isso significa que seu dinheiro de assinante não é um investimento direto numa obra. Os artistas estão à mercê de hábitos coletivos de escuta (os mais escutados levam até as receitas de quem não o escutou). 

O problema se agrava quando pensamos que os fluxos são reforçados pelos algoritmos, que recomendam o que você gosta mas levando em conta também a relevância dos artistas na plataforma, reforçando essa relevância. Essa é a “bolha“: quem já aparece mais, é mais recomendado, aumentando a influência de quem já é influente.

E isso se agrava ainda mais se pensamos que os algoritmos poderão ser influenciados pelo “Modo Descoberta”, recurso de “impulsionamento” que permite visibilidade ampliada em algumas das playlists geradas por algoritmos, com a taxa promocional de royalties aplicada apenas a streams “impulsionados”.

Já o modelo centrado nas escolhas e hábitos dos usuários, que resolveria este reforço dos top charts, gera maior complexidade no cálculo e maior custo de operação da plataforma, o que provavelmente diminuiria os royalties a artistas.

No atual sistema de pagamento centrado no total de receitas da plataforma e na participação de cada artista/faixa nesse total (modelo centrado no serviço ou pro-rata), as recomendações de algoritmos acentuam as disparidades entre artistas, pois recomendam o que você gosta mas levando em conta também a relevância dos artistas na plataforma – mais populares são mais recomendados. Algoritmos reforçam o status-quo musical e o fazem parecer ainda mais importante, o que evidentemente se reflete nos pagamentos.

Outras implicações: estamos percebendo a “bolha” da música?

Nas redes sociais essa prática de reforçar posições e “inflar a bolha” vem sendo condenada em função dos efeitos sociais que trás, especialmente quanto ao risco à democracia e à livre opinião. Este é o tema de documentários como Privacidade Hackeada (que fala do papel do Facebook e da Cambridge Analytica nas eleições norte-americanas) e O Dilema das Redes.

Estamos começando a pensar nisso nas redes sociais. Mas também precisamos pensar nisso no ecossistema da música, que é altamente complexo e fica ainda mais complexo quando pensamos nos direitos autorais e conexos e nos fluxos de seus pagamentos.

Com o “Modo Descoberta” ou o “impulsionamento” de faixas (análogo aos anúncios das redes sociais apesar da diferença de não haver desembolso imediato), ao invés de trabalhar para que as disparidades diminuam, o Spotify está fazendo duas coisas ao mesmo tempo: por um lado permite que artistas com pouca relevância pensem que estão interferindo nas recomendações algorítmicas (dando a impressão de que é possível construir relevância dessa forma, sem que ainda saibamos qual o resultado prático disso em termos de remuneração); e por outro lado atribuem a responsabilidade pela pouca relevância apenas aos artistas, desconsiderando que o sistema de recomendações algorítmicas e pagamentos centrados nos fluxos reforça os desequilíbrios. É como se o Spotify se eximisse da questão, dizendo: “matem-se entre vocês, pequenos, para que o sistema seja mais justo”.

Tudo isso porque ele precisa diminuir a dependência de titulares de direitos para se fazer lucrativo (embora a lucratividade também dependa de fatores como o serviço oferecido, da força dos mercados consumidores e do número de assinantes premium). Também não estou discutindo sobre quem precisa de quem, pois é evidente que há uma dupla dependência entre artistas e Spotify. 

Meu ponto é: ninguém condena uma empresa que tenta se fazer lucrativa (contribuímos com esse esforço quando fazemos campanhas para levar mais ouvintes a elas, para benefício de ambos). O problema é quando ela ignora que suas práticas tem sido nocivas para um ecossistema já enfraquecido pelo lobby das grandes gravadoras, que no rateio entre titulares acabam sendo responsáveis pela maior parte (58%) dos royalties gerados.

O debate sobre se o streaming veio para ficar já passou, mas o tempo de experimentar maneiras de tornar o streaming mais justo para todos está apenas começando …